domingo, julho 01, 2012

O MPLA e a história, por Jean-Michel Tali.

O MPLA e a história
11/02/2003

«Nenhum dos movimento s de libertação (FNLA, MPLA, UNITA) estava disposto a
partilhar o poder... Penso, no meu livro, ter dado elementos suficientes para demonstrar
isto», afirma o historiador Jean-Michel Tali.

Jean-Michel Mabeko Tali, tem vários diplomas de Universidades Francesas, um
Mestrado em Estudos Africanos do Instituto de História da Universidade Bordeaux III,
uma pós-graduação e um doutoramento em História Política da Universidade de Paris
VII.
Além de fazer análises sócio-políticas para várias revistas, Jean-Michel é também
romancista. Apresentou em Paris, em Fevereiro de 2002, o livro L'Exil et L'Interdit (O
Exílio e o Interdito), dedicado a uma geração na qual se inclui «de jovens revoltados e
muito politizados que viveram intensamente a questão dos países africanos dominados
por partidos únicos». O seu interesse pela História política terá começado nessa época..
O seu 2º romance publicado também pela Editora L'Harmattan intitula-se "Le Musée
de la Honte" (O Museu da Vergonha), fala das crianças soldados, na guerra civil do
Congo, é uma homenagem a uma irmã sua que foi recrutada e, será lançado em Paris,
em meados deste ano.
A partir de Washington, onde se encontra como professor convidado na Howard
University, Jean-Michel Tali teve a gentileza de nos conceder esta entrevista sobre
os dois volumes da sua obra “O MPLA Perante si Próprio”, lançada em Angola em
Outubro de 2001 e, em Lisboa, em Maio de 2002. Trata-se de uma investigação
histórica sobre o percurso deste movimento transformado em partido único.
Foi no Congo que tomou contacto com militantes do MPLA. Nunca foi simpatizante do
movimento?
O meu encontro com o MPLA teve lugar em Brazzaville, por intermédio de amigos
Angolanos. Sou de uma geração (anos70) politicamente muito engajada, que se sentia
solidária com todos os povos em luta e com todas as lutas de libertação do mundo,
da África à Ásia e América Latina. Os povos de Angola viviam isso, através dos
movimentos. O MPLA, sediado em Brazzaville, era para nós, representante desta luta.
Fizémos o que pudémos para manifestar a nossa solidariedade ao povo angolano através
do MPLA. Neste sentido, fui de uma geração solidária e, portanto, simpatizante da
luta de libertação feita pelo MPLA. Não sendo Angolano, as minhas manifestações de
simpatia limitavam-se a esse nível.
Como conheceu e se tornou íntimo da família Lara?
A relação com os Lara fez-se através de uma longa história de amizade entre eu e Paulo,
amigo de colégio e, primogénito da Ruth e do Lúcio, em Brazzaville, nos fins dos anos
60. Tornámo-nos como que irmãos.
Como analisa o facto do MPLA ter tomado unilateralmente o poder e se ter mantido
nele durante estes quase 30 anos apesar das crises que ocorrem no seu interior, desde a
fundação?
Esta questão abarca considerações que vão além da simples política doméstica
angolana. Na realidade, nenhum dos movimentos de libertação (FNLA, MPLA,
UNITA) estava disposto a partilhar o poder com os dois outros. Não estou a fazer
nenhuma revelação e, penso ter dado elementos suficientes no meu livro para
demonstrar isto. Aconteceu que neste processo de 1974-75, o MPLA beneficiou de uma
série de factores conjunturais, tanto objectivos como subjectivos, para “fintar” (passo a
expressão) os seus dois concorrentes.

Por factores objectivos, entendo as alianças políticas tanto internas, a nível da sociedade
angolana, como internacionais. Cada um dos três movimentos armados beneficiou
destes factores. Mas o que fez virar o barco a favor do MPLA, terá sido a maior
capacidade, a nível interno, em capitalizar alianças locais, nomeadamante das forças
sociais da capital, muito mais eficientes para a conjuntura de então. Contou muito, ter
a capital na mão, no contexto africano da altura, era um trunfo essencial para o que
viria. As alianças internacionais: aliar-se a Cuba era, de certo muito menos prejudicial
do que aliar-se ao regime de Botha e trazer o exército da África do Sul dos tempos
do apartheid, independentemente das razões invocadas: moralmente, isto dificilmente
passava tanto em África como na maior parte do mundo. Isto jogou muito contra a
FNLA e a UNITA. O resto foi um jogo diplomático dos mais fáceis para o MPLA e os
seu apoiantes.
Recordo a imagem de soldados brancos, do exército sul-africano, capturados pelas
FAPLA e seus aliados cubanos, isto levado a uma cimeira da OUA...
Pode imaginar o impacto diplomático que teve! Depois disto e, apesar de algumas
oposições a nível da OUA, não foi difícil fazer admitir a República Popular proclamada
por Agostinho Neto nas instâncias africanas e internacionais. Subjectivamente, vou
apenas lembrar que: não foi difícil ao MPLA mobilizar o povo de Luanda (e não se trata
apenas uma questão étnica) contra a FNLA: por razões históricas objectivas, muitos
dos Angolanos do ELNA (exército da FNLA), não dominavam a língua portuguesa. Às
vezes nem sequer a falavam. Muitos eram filhos de emigrados angolanos de longa data
no antigo Congo-Belga. A propaganda do MPLA, inventiva e muito dinâmica na altura,
apresentou toda esta gente como sendo estrangeiros, “zairenses”, etc.
Houve participação do exército zairense - e não há maneira de a FNLA negar isto, pois
não só foram capturados alguns soldados do exército de Mobutu, mas fontes da própria
CIA o reconhecem. Mas os Angolanos do ELNA (Exército de Libertação Nacional de
Angola, braço armado da FNLA) acabaram por não entrar muito na contabilidade.
Era como se não existissem! Isto foi um formidável factor que jogou a favor do
MPLA e, cujas consequências ainda se podem sentir hoje, como sabe... As invasões
estrangeiras, sul-africanas nomeadamente, deram ao MPLA todos os trunfos de
legitimação e, de perduração do seu poder. A guerra civil, alimentada por vários
factores, deu um fôlego maior a este longo reinado do MPLA. De forma que a própria
vida do partido - e do país - ficou suspensa ao fim deste longo conflito: adiou-se a
resposta a muitas questões quer internas ao partido, quer sociais, quer políticas, com
base na resolução prévia deste conflito.
Quais foram as alianças mais importantes que o MPLA fez antes e depois da
independência e actualmente?
Nenhuma luta de libertação levada a cabo no chamado “terceiro mundo” e, mormente
em África escapou a um facto objectivo: não podiam contar com o apoio dos países
ocidentais em termos daquilo que era essencial: as armas.
Houve, por exemplo, nos casos das lutas nas colónias portuguesas, ajudas humanitárias
de países nórdicos, ou pelo menos de organizações humanitárias e de solidariedade
destes países. O MPLA beneficiou muito do apoio de organizações norueguesas,
holandesas e dinamarquesas. Para as armas, só podiam contar com os países socialistas,
do Leste Europeu, da América Latina (Cuba) - e de forma muita complexa e mitigada -
da Ásia (China e, de certo modo, muito pouco, da Coreia do Norte).
Portanto, era normal que as maiores alianças internacionais do MPLA movimento
de libertação fossem com estes países. Havia os países africanos, cujo papel era
absolutamente fundamental, nem que fosse por meras questões geográficas: os Congos
e a Zâmbia para os movimentos angolanos, o Senegal e a Guiné Conakry para o

PAIGC, a Tanzânia e a Zâmbia e, em certa medida (não muito seguro) o Malawi para a
FRELIMO (já que não podiam contar muito com a Rodésia do Sul (actual Zimbabwe),
o pequeno reino da Swazilândia, dada a sua difícil situação geográfica. No caso do
MPLA, o maior e mais seguro aliado em África foi sem dúvida alguma o Congo-
Brazzaville. Depois da independência, essas alianças foram-se diluíndo em certos casos
(africanos), nas considerações de questões e “razões de Estados”... As solidariedades já
não foram – e nem podiam, como é obvio! – ser as mesmas.
Qual foi o papel da PIDE nos problemas do MPLA?
Na guerra entre os movimentos de libertação dos territórios colonizados, temos sempre
dois ou três níveis. O primeiro – que se torna o fundamental, mesmo quando às vezes só
intervem depois, o terreno militar, quando a potência ocupante se recusa a dar a
independência, como foi o caso de Portugal. O segundo terreno, é o diplomático,
também é fundamental, pois dele dependem, não só a sobrevivência do movimento
armado (graças à aquisição de armamentos por diversas vias entre as quais ajudas de
aliados e amigos), mas também porque é nele que tem que se lutar para fazer passar
mensagens, fazer vencer a causa defendida e atrair ajudas político-diplomáticas,
humanitárias e materiais. Portanto, o reconhecimento internacional é essencial e
constitui para todo movimento armado um terreno de luta vital. Graças a ele, o
movimento pode romper as barreiras de silêncio que em geral os media das super
potências construíam à volta das lutas de libertação. O silêncio, para qualquer
movimento de libertação, pode ser mortal. Veja-se Timor Lorosae e, dá para entender a
importância da mediatização de uma luta de libertação, isto dito sem demérito do
combate interno, do qual depende o essencial da vitória. Há no entanto um terceiro
terreno: a subversão. Era de “boa guerra” diríamos, no sentido de que neste tipo de
situações cada um procura destruir o outro de todas as maneiras possíveis. A potência
combatida vai, não só procurar destruir militarmente o movimento armado, como
procurará miná-lo no interior, provocar disfunções, etc. Quem executou os planos de
assassinato de Amílcar Cabral urdidos pela PIDE, foram militantes dissidentes do
PAIGC. A PIDE aproveitou problemas internos ao PAIGC para armar uma mão interna.
Os movimentos de libertação não tinham, concerteza, meios de responder pela mesma
moeda. Quanto muito procuravam obter a solidariedade de organizações políticas
portuguesas.
Mas ao mesmo tempo, seria histórico e contraproducente em termos da compreensão
deste processo atribuir à PIDE todos os dissabores internos dos movimentos de
libertação. No caso do MPLA, procurei mostrar, no meu livro, que as raízes das crises
que sacudiram o movimento de libertação na altura, tinham de ser procuradas em
factores intrínsecos e, não imputá-las sempre a uma “mão externa”, à PIDE, etc.
A que se ficou a dever o 27 de Maio?
Vou resumir aqui o que explico no livro: o 27 de Maio de 1977 é o culminar de
contradições cujas origens devem ser procuradas desde a luta de libertação nacional
por um lado e, nos rescaldos das lutas e aspirações sociais herdadas da sociedade
colonial angolana. Nito Alves foi um combatente de uma região que pagou caro a
sua proximidade com a capital da colónia. O seu contacto com a direcção do MPLA
passou-se praticamente no fim da guerra. Ele como outros da Primeira Região, tinham
claramente feito entender a sua diferença quanto à visão que tinham não só da forma
como a luta foi dirigida (e nisto peço para lerem a mensagem da Primeira Região ao
Congresso de Lusaka de Setembro de 1974, anexado no meu livro, volume I), mas e
muito rapidamente, de questões como a gestão da questão racial no seio da sociedade
(ler as declarações de Nito, nomeadamente em 1976, sobre este assunto e, cujos
extractos cito no meu livro) e as questões sociais.

Mormente, a questão da orientação ideológica do partido no poder acabou agudizando
as já existentes divergências: Nito queria uma revolução pura e dura, de tipo
Bolchevick, o seu discurso pro-soviético não deixa sombra de dúvidas. Mas eu não me
quis limitar a isto. O que tento mostrar é que, para se entender as motivações de Nito e,
dos seus companheiros, não seria produtivo do ponto de vista da análise contentar-nos
em dizer que ele se tornou “de repente” pró-soviético”.
Havia outros que o eram e outros que eram maoístas, etc. O importante na minha
opinião, é entender a dinâmica socio-politica que desemboca nesta tragédia. Parece-
me importante colocar a questão em termos das lutas sociais que sustentam o discurso
político de Nito, e a sua convicção, quase que messiânica (clara em alguns dos seus
discursos ou escritos, nomeadamente as suas famosas “Treze teses”) de que a história
tinha colocado nos seus ombros um papel fundamental neste processo revolucionário
angolano.

Conforme declarações suas, foram os mesmos jovens que ajudaram o MPLA a vencer a
guerra de Luanda, que no 27 de Maio foram eliminados, porquê?
O MPLA deve sim, a sua regeneração política de 1974-1975 à juventude urbana, mais
particularmente em Luanda.
O movimento acabava de sofrer uma longa fase de sucessivas crises e, quando chega
o 25 de Abril, é um movimento exausto, dividido, militarmente sem mais capacidade
de iniciativa, enquanto que, entretanto, a FNLA estava a rearmar-se como nunca o
tinha sido antes e, a UNITA, que se precipitou em assinar o cessar-fogo com as novas
autoridades portuguesas, saía dos confins do Moxico para não só ser reconhecida
finalmente pela OUA, mas sobretudo ganhar milhares de adeptos nos centros urbanos,
sobretudo no planalto central e, no resto do sul do país (há reportagens fotográficas de
comícios monstruosos da UNITA nestas regiões. A entusiástica adesão de milhares
de jovens, que foram das cidades para os CIR (Centros de Instrução Revolucionária),
cheios de ideias românticas e muita sinceridade para ser formados como soldados,
de repente deu a Agostinho Neto o fôlego que permitiu que ele e o que restava do
movimento pudessem reconstituir o potencial militar deste. Não fosse isto e, face a uma
provável coligação FNLA/UNITA, o MPLA teria vivido uma real descida aos infernos.
A história teria sido outra.
O problema é que esta juventude entusiasta, voluntarista, estava dividida em várias
tendências ideológicas, que reflectiam em grande parte as divisões ideológicas que
marcavam o movimento comunista internacional, mas reflectiam igualmente as divisões
ideológicas na esquerda portuguesa do pós-25 de Abril.
Estas divisões são um dos mais marcantes aspectos das lutas políticas urbanas daquela
época. Para ser breve: houve um choque entre estes jovens, suas visões do mundo, suas
ideologias, etc., com as da liderança do MPLA, mormente de Neto. Alguns entraram
em choque com Nito Alves; outros viram nele o verdadeiro e único revolucionário, face
a uma direcção do MPLA que eles e outros (os CAC por exemplo, seus adversários)
qualificavam de “burguesa”. O resto você sabe... Não vou aqui entrar no macabro
debate estatístico sobre quantos terão sido mortos a 27 de Maio de 1977... O drama do
que aconteceu não se limita a isso....
Acredita que ficou isento na sua pesquisa?
Sou um profissional das Ciências Históricas. Nesta qualidade sei, e, aprendi desde o
primeiro ano na Faculdade, que a neutralidade, em Ciências Sociais e, mormente em
História, é um exercício difícil de se realizar, porque quem escreve é um ser social, com
uma trajectória, com vivências, uma educação, opiniões políticas próprias, etc. Isto quer

dizer que estes aspectos todos podem interferir de uma forma ou de outra na obra e,
dar uma certa orientação ao conteúdo desta. Em todas as Faculdades por onde passei,
os mestres sempre chamaram a nossa atenção para isso. O valor do bom historiador
reside então na sua capacidade em poder colocar-se acima da subjectividade, sobretudo
quando se trata de questões polémicas.
A minha especialidade é a História Política, com tudo o que isto acarreta em termos de
riscos de subjectividade e de parcialidade na análise dos factos.
Tentei fazer o melhor possível para escapar a estas armadilhas que espreitam qualquer
historiador e, mais ainda, o politista neste tipo de empreendimentos – descrever e
analisar um processo político-histórico. As reacções positivas e de encorajamento que
tenho recebido por todo o lado, inclusive de personalidades que me consideravam como
demasiado ligado a algumas das velhas figuras do MPLA, seus opositores nas lutas
internas no seio do ex-movimento de libertação, deixam entender que atingi o objectivo
desejado: manter-me isento, equidistante e, analisar com a maior frieza possível, sem
tabus e sem temores, o processo da luta de libertação, bem como os dramas que
marcaram a trajectória do MPLA. Mas, deixo aos leitores, a latitude de apreciar. Dito
isso, quero ser realista: o historiador que escrever o livro perfeito, sem falhas (quer
objectivas, por falta de mais dados, quer subjectivas por alinhar mais numa posição do
que noutra), ainda está para nascer. Como Historiadores, escrevemos o que as nossas
fontes nos disponibilizam e, as nossas análises não podem ser tidas como alguma
palavra de Deus. As análises resultam dos limites dos nossos conhecimentos, da
experiência como académicos, das fronteiras que conseguimos atingir em termos de
saber científico, de estudo, mas também – e muito! – da experiência humana
acumulada. Se tivesse escrito este livro mais tarde, talvez fosse ainda mais completo,
mais profundo, etc. Porque teria, entretanto, ganho mais alguma coisa em termos de
experiência, tanto humana como académica. Tive como bandeira a honestidade
intelectual e a luta contra todo tipo de tabus nesta matéria.
A publicação do livro “O MPLA Perante si Próprio”, não representa o fim do seu
interesse pelas questões políticas de Angola. Fará outros estudos nessa área?
O processo angolano é como que um laboratório vivo. Um terreno de pesquisa que tem
ainda muitíssimo para dar. Portanto, penso que tenho muito que aprender e pesquisar
neste fértil terreno.

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