segunda-feira, janeiro 13, 2014

ENTREVISTA COM GEORGE CHIKOTI | "A União Africana deve ter autoridade"

Quénia Georges Chikoti

Luanda acolhe a partir de hoje a quinta cimeira dos Chefes de Estado e de Governo da Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), que marca o início da presidência angolana na organização, sucedendo ao Uganda. O ministro das Relações Exteriores, Georges Chikoti, falou ao Jornal de Angola sobre os objectivos da cimeira e do mandato que começa, numa altura em que alguns Estados-membros estão mergulhados em graves crises políticas.

Jornal de Angola - Por que razão foi criada a Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos?

Georges Chikoti - A CIRGL surgiu num momento marcado por conflitos na República Democrática do Congo, Ruanda, Burundi, bem como em toda a região dos Grandes Lagos. Tinha-se a percepção que os copnflitos que ocorriam num país tinham origem noutro. Estávamos na década de 1990, quando se deu o declínio da liderança de Mobutu e a chegada de Kabila ao poder. Havia grande animosidade em relação à RDC, particularmente da parte do Ruanda, Uganda e do Burundi. A RDC era visto como um alvo pelo seu tamanho e quantidade de recursos naturais. A região encerra esta sobreposição de aspectos políticos, geográficos, históricos e até geológicos e a criação da CIRGL foi a forma de trazer todos os países, os mais relacionados com os conflitos e os que estão à volta, e a comunidade internacional para em conjunto se olhar para a região numa perspectiva de longo prazo, solucionando os grandes problemas, principalmente os de guerra civil, genocídios e rebeliões. O objectivo prioritário da assinatura do pacto de segurança e desenvolvimento em 2006 foi transformar a região numa zona pacífica e estável.

JA - Quais as grandes metas da presidência angolana, numa altura em que se assiste ao reacender de vários conflitos na região?

GC
  - O objectivo essencial da organização é trabalhar para a consolidação da paz e do desenvolvimento. Angola, depois de ter passado por um longo período de guerra, conseguiu chegar à paz e à reconciliação nacional e empenhou-se num processo de desenvolvimento económico nacional sem nunca se ter isolado dos problemas à sua volta, como os da RDC, Namíbia e África do Sul. O nosso país sempre fez parte das soluções globais no âmbito da União Africana e foi por isso que os Chefes de Estado da CIRGL manifestaram na última cimeira desta organização desejo de ter Angola na presidência.

JA - A presidência chega pouco depois do governo da RDC ter reconhecido o papel importante de Angola para o fim do conflito armado naquele país.

GC
- Angola sempre manteve uma posição coerente, embora houvesse vezes em que não fomos bem compreendidos, mas a verdade é que em momento algum tivemos outra posição que não fosse a de contribuir para a paz e estabilidade na RDC.  Sempre desejámos que a RDC tivesse estabilidade porque com isso também somos beneficiados no processo de desenvolvimento.

JA - Como tem sido desempenhado o papel de Angola?

GC
- Em todas as negociações para uma paz global no Congo estivemos sempre comprometidos, como também nos retirámos sempre quando considerámos que o nosso papel estava concluído. Ajudámos a RDC na fase de libertação, na consolidação da paz e hoje, na base do acordo tripartido, achamos que devemos continuar a ajudar na sua estabilização. Nunca fomos indiferentes noutras situações ou regiões. Ajudámos a Namíbia e a África do Sul e quando presidimos ao Órgão de Política de Defesa e Segurança da SADC também auxiliámos Madagáscar. Trata-se de uma obrigação para com os amigos e parceiros. Temos boas relações com o Uganda e com o Ruanda e por isso queremos que ultrapassem a fase de adversidade.

JA - O que esperar de parceiros como a ONU e a UA nos próximos dois anos da presidência angolana?

GC
- Temos a certeza que Secretário-Geral das Nações Unidas está comprometido e inclusivamente consultou-nos para a realização da reunião de 24 de Fevereiro do ano passado, em Addis Abeba, que levou à assinatura do acordo para consolidação da paz e segurança e serviu de base à mobilização da brigada especial para garantir a segurança na fronteira entre a RDC e o Ruanda e com o Uganda e teve um papel importante na derrota do M23.

JA - O que dizer dos ataques que recentemente abalaram Kinshasa e outras cidades congolesas?
GC
- Há um inquérito para apurar as causas do que aconteceu, mas parece ser importante que os congoleses apreciem a paz que podem ter porque senão a RDC corre o risco de se tornar num país que não sai do círculo vicioso dos conflitos, de disputas e de rebeliões.

JA - O que tem falhado na RDC?
GC
- É importante que haja uma política que permita a consolidação da paz e o desenvolvimento da RDC e com isso a extinção dos vários diferentes grupos rebeldes que ainda há naquele país. É importante que haja uma vontade muito clara dos governantes de ultrapassarem as diferenças políticas e analisarem formas de formar governos cada vez mais inclusivos. A RDC é a primeiro país em África a viver uma guerra civil de secessão, a do Katanga na década de 1960. É por isso que uma Conferência Internacional sobre os Grandes Lagos pode ser importante porque os congoleses democráticos podem cooperar na criação de instituições que sirvam todos os Estados.

JA - Tem faltado entendimento?
GC
- É necessário reduzir a animosidade e promover maiores consensos para a solução dos problemas. Esta é a visão que temos e achamos ser também a perspectiva do Secretário-Geral da ONU. Durante a nossa presidência queremos a paz e desenvolvimento. A RDC estável permite acelerar o desenvolvimento do continente. Por isso durante a nossa presidência queremos trabalhar com todos para reduzir o potencial de conflitos e participarmos activamente no processo de estabilidade regional.

JA - Qual é a situação actual do Diálogo de Campala?

GC
- A nossa esperança era que, terminado o conflito militar, a RDC aproveitasse a oportunidade para rapidamente assinar um acordo com o movimento rebelde e se passasse às fases da desmobilização e reinserção social dos revoltosos. Infelizmente, o processo não se desenvolveu como se esperava e ainda não se assinou um documento suficientemente claro que permita concluir que deixaram de lutar. O potencial de conflito permanece. A posição de Angola sempre foi de encorajar o governo de Kinshasa a ultrapassar essa situação e passar à fase do desenvolvimento. Os ataques que se verificaram naquele país levam-nos a concluir que podem urgir novos conflitos, o que nos preocupa, pois desejamos que as negociações de Campala se concluam. É certo que o M23 é apenas uma das facções, mas considero importante que se dê esse passo para depois se ver como concluir as negociações com os outros grupos rebeldes.

JA - O fim do conflito militar na RDC reduz ou aumenta o grau de complexidade da presidência angolana na CIRGL?

GC
- Trabalhar em paz é sempre melhor do que num ambiente de conflito. Neste momento, aparentemente a situação de conflito armado deixou de existir na RDC,  mas surgiram os ataques de Kinshasa, Lubumbashi e Kissangani, entre outros, e ninguém consegue dizer ao certo o nível de estabilidade que o país regista. Num ambiente de paz a nossa contribuição é melhor, mas estamos na disposição de apoiar a RDC se o conflito prevalecer.

JA - Num ápice surgiram conflitos na República Centro Africana e no Sudão do Sul. Como é que Angola encara a situação, agora que assume a presidência da CIRGL?

GC
- Ninguém contava que o Sudão do Sul, com pouco mais de ano de existência, pudesse viver um conflito tão profundo. Mas isso também tem a ver com as lideranças africanas, pois as diferenças no continente são grandes, o que significa que há sempre a possibilidade de haver uma divergência e despoletar um conflito. As pessoas têm de ter consciência que nem tudo é resolvido pela força das armas, pela morte de pessoas inocentes. O Sudão do Sul ainda nem sequer conseguiu usufruir do rendimento do petróleo e já se vê num conflito extremamente grave. Esperamos que a reunião que decorre na Etiópia termine com este conflito. Quanto à RCA, é preciso perceber que nos últimos 50 anos teve uma sucessão de golpes de Estado e de sublevações. Vamos esperar que a resolução 21/27 das Nações Unidas possa encontrar uma solução e conte com o empenho da União Africana. É um ambiente extremamente difícil porque passou a ser um conflito religioso, entre muçulmanos e não muçulmanos, entre o antigo e o novo regime.

JA - Qual é a expectativa de Angola?
GC
- A nossa ideia é que a resolução venha permitir a solução deste caso, com a mobilização de forças o mais isentas possível em relação à RCA. Agora com o Sudão do Sul e a RCA em conflito, que são países com uma fronteira extensa, torna-se mais complexa a situação e difícil de antever uma saída. Há uma reunião de reflexão dos ministros dos Negócios Estrangeiros no dia 24, em Addis Abeba, e outra dos Chefes de Estado-Maior, na mesma cidade, para olharmos para a arquitectura da Defesa e Segurança da União Africana e para a mobilização de forças para as várias situações que exigem uma presença militar.

JA – Como é que a ONU, a UA e outras organizações sub-regionais podem ajudar na solução de conflitos como estes?

GC
- Parece pertinente que haja menos ingerência externa e mais participação dos africanos e das suas instituições. A União Africana devia ser a única organização a velar pelas questões de paz e segurança no continente. Os Chefes de Estado já definiram como isso deve funcionar. Em todos os conflitos em África devem ser as forças da União Africana a intervir e a decidir com quem trabalhar para solucionar os problemas. Só assim podemos evitar que sejam em primeira instância geridos ou tratados por outras forças que não sejam as do nosso continente.

JA – Como vê o papel da União Africana?

GC
- É preciso que a União Africana recupere a sua autoridade política e moral, e através das suas instituições viabilize a criação da sua força de intervenção para esse tipo de conflitos. África não pode pôr a agenda do desenvolvimento económico à frente se ainda não consegue garantir e assegurar a sua própria paz. É preciso discutir-se claramente nos termos em que a União Africana concebeu a sua arquitectura para as questões de paz e segurança. Porque hoje a nível da SADC temos essa arquitectura a funcionar. O chefe de Estado-Maior é angolano e funciona em Gaberone. É preciso que toda a África tenha essas forças. Isso é que devia ser prioridade para a solução desse tipo de situações, porque na condição em que nos encontramos arriscamo-nos a continuar a ver primeiro forças de outros países e só depois os africanos. O ideal, sublinho, é criarmos os nossos próprios mecanismos em condições de termos primazia na solução dos conflitos em África.

JA – A que distância nos encontramos dos objectivos que nortearam a criação da CIRGL?
GC
- O pacto de segurança e desenvolvimento adoptado em 2006 com o objectivo de acelerar o desenvolvimento da região e do continente existe. Mas quando vamos para a implementação percebemos que ainda estamos um pouco longe. Mas também convém admitir que já há muitas actividades que ocorrem a nível da juventude, da defesa dos direitos da mulher, etc. O que nos deixa preocupados é quando temos um caso como o da RCA, em que há inicialmente uma perturbação que depois passa a ser uma guerra entre comunidades religiosas. Isso é extremamente mau. É necessário que se ponha fim à dimensão dos conflitos, tanto os que ocorrem ou ocorreram na RDC, onde as tropas vinham dos países vizinhos, e depois todos chegarmos à conclusão de que só poderemos pensar em desenvolvimento quando todos abandonarmos as armas.

JA - O que prevê o pacto da CIRGL?

GC
- O pacto da CIRGL prevê vários tipos de soluções em função da natureza dos conflitos. Se o motivo da disputa é a riqueza devem criar-se empresas que permitam uma exploração conjunta. A nível dos Grandes Lagos já se discutem profundamente essas questões. O problema é quando surgem conflitos inesperados. É necessário que essa questão dos conflitos seja prioritária e resolvida, tanto a nível da CIRGL, como da UA. Até há pouco tempo pensava-se que África estava no fim do período dos golpes de Estado e das guerras civis, mas surgiram as da RCA, Sudão do Sul e RDC, que nos levam a pensar o contrário, mas é necessário acabarmos com todos os problemas políticos e militares que se opõem ao desenvolvimento do continente.

JA – Estamos muito longe disso?

GC
– Temos pela frente algumas cimeiras e encontros para reflectir sobre a questão dos conflitos em África, especialmente os mais difíceis de solucionar, como os da Somália, Nigéria, Mali, ou quando se tornam religiosos, como no Egipto e na Líbia. Temos de pensar bem sobre a origem desses conflitos. Devemos ser os primeiros a decidir com quem vamos trabalhar. Alguns países africanos pensam dessa forma, mas não avançam porque não confiam na força das suas organizações na resolução de questões que são prioritárias.

JA - Referiu-se no ano passado a anomalias no funcionamento do secretariado da CIRGL, razão pela qual foi convocada uma reunião para discutir o assunto. A situação ficou resolvida?
GC
- O secretariado existe e tem funcionado. Temos um secretário executivo adjunto. O problema é o mesmo da maioria das organizações africanas, a falta de contribuições. Os Estados não contribuem. Quando o orçamento não é suficiente estamos apenas a pagar os salários e a fazer algumas reuniões. É também importante que se respeite os estatutos da organização. Há muitas coisas a corrigir, mas temos funcionários extremamente capazes e é preciso dar-lhes força para continuarem a trabalhar.

JA - Quais os grandes temas da agenda da cimeira?
GC
- Vamos tratar essencialmente dos conflitos que se registam na região, pelo que prevemos realizar reuniões dos Chefes de Estado-Maior, de ministros da Defesa, dos Negócios Estrangeiros e dos Chefes de Estado e de Governo. Vamos debruçar-nos igualmente sobre a dimensão humanitária dos conflitos, o tipo de ajuda que pode ser prestada e também tratar de algumas questões internas. Assumimos a presidência da CIRGL de coração aberto, para ajudar e sermos úteis aos outros. Queremos partilhar experiências e ajudar no que for necessário para que o continente viva em paz e possa desenvolver-se. Se é rico temos de trabalhar para proporcionar paz e estabilidade e assim explorar essa riqueza para o bem das comunidades africanas.

JA - No ano passado, o Presidente José Eduardo dos Santos disse que apesar dos problemas é possível desenvolver o continente e criticou o ‘afropessimismo’. Podemos esperar uma presidência ‘afro-optimista’?

GC
- Passamos por maus bocados durante muitos anos e nunca deixámos de acreditar que um dia íamos ter paz. Já estivemos pior do que muitos países a que já fizemos referência e nunca perdemos o optimismo de acabar com a guerra e vivermos melhor. Nesta fase em que estamos empenhados no desenvolvimento de Angola e também dos nossos vizinhos não há razões para sermos pessimistas. Temos de resolver as questões prioritárias para podermos fazer o desenvolvimento do nosso continente.

Via|JA/Kumuênho da Rosa

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