sábado, dezembro 05, 2015

Consequências da Crise: Portugueses saem de Angola, "a salvação já não é aqui"

Reportagem originalmente publicada em dezembro de 2015
Sofia Ferreira está em Angola há quase cinco anos. Vive em Viana, a cerca de 20 quilómetros de Luanda, onde é educadora num colégio que a própria criou. “Quando abri o colégio a maioria dos alunos eram portugueses. Hoje, a maioria são angolanos. O nosso ano letivo reabre, tal como em Portugal, em setembro. Mantivemos muitos dos alunos portugueses inscritos até aí, mas de setembro até agora muitos deles foram embora.

126.356

Em 2013 eram 115.595 os portugueses registados nos consulados portugueses em Angola. Em 2014 esse número subiu para os 126.356.
Por outro lado, se em 2009 entraram 23.787 portugueses em Angola, em 2014 foram somente 5.098. Antes, em 2013, tinham sido um pouco menos: 4.651.
Observatório da Emigração
Muitos dos pais destes alunos trabalhavam na construção civil, a maioria deles em construtoras portuguesas, como a Somage, Mota-Engil, Teixeira Duarte ou Soares da Costa, garante Sofia. “Mas como as obras públicas do Estado angolano pararam, as empresas tiveram que dispensar trabalhadores, outros têm salários em atraso. E vão regressando.” Mesmo os que continuam empregados também partem. “A maior parte dos trabalhadores portugueses em Angola e que trabalharam, por exemplo, em empresas portuguesas e de construção civil, tinham o ordenado depositado diretamente em Portugal, em euros, e as ajudas de custo, na alimentação, no alojamento, eram pagas em kwanzas em Angola. Agora é tudo pago em kwanzas. E por norma a transferência demora uns dois meses a ser feita. Às vezes mais, dependendo dos bancos. E essa espera não é compensadora.”
Antes, por lei, tínhamos direito a 10 mil dólares por adulto e mais dois mil e 500 por criança. Mas há mais de um ano que não viajamos com dólares. Não há nos bancos.
Sofia, dona de colégio
Houve mais mudanças. Muitos dos portugueses que passaram a receber em kwanzas trocavam-nos por dólares no banco. E viajavam com eles de cada vez que vinham (ou que tivessem quem viesse) a Portugal. “Sim, era possível viajar com dólares. Até 10 mil por pessoa. Era necessário ir ao banco, apresentar o bilhete de viagem, e dizer que se queria comprar dólares para viajar. Antes, por lei, tínhamos direito a 10 mil dólares por adulto e mais 2.500 por criança. Mas há mais de um ano que não viajamos com dólares. Não há nos bancos”, explica Sofia.

Comprar dólares na rua…

Mas havia. Nos bancos e nas ruas. “Em Angola, quando cá cheguei há mais de quatro anos, havia tantos dólares quanto kwanzas a circular. Por exemplo, se eu pagasse em kwanzas uma despesa, podia receber o troco em dólares.” Agora, só nos kinguilas.
O que são os kinguilas? “Os kinguilas são mulheres. Sobretudo mulheres. Parece que estão na rua a passear mas estão a vender dólares. São quase como os traficantes de droga. Quem quer, sabe sempre em que rua encontrá-los. E se pararmos os carros, vão logo a correr perguntar se queremos dólares. Por norma, o câmbio é mais do dobro do que seria nos bancos. E há portugueses que precisam mesmo do dinheiro e pagam. Mais vale pouco que nada.”

247 milhões

Em 2014 os emigrantes portugueses em Angola enviaram 247,960 milhões de euros em remessas para Portugal. Já bem menos que os 304,330 milhões de 2013.
Pordata
No fundo, 0s kinguilas representam o mercado paralelo de câmbio, mas é uma atividade aceite no país. “Aquelas pessoas estão na rua, não se escondem da polícia. É um mercado que é tolerado. Com a escassez de dólares, as pessoas recorreram ao mercado informal. É como o arroz. Se há escassez de arroz, as pessoas vão comprá-lo ao mercado informal e vão pagar o que os vendedores pedirem por ele.” Carlos Rosado de Carvalho é jornalista económico em Luanda. E recorda que o negócio dos kinguilas esteve quase a desaparecer, mas regressou com a saída do dólar de circulação no país. “Quando a taxa de câmbio era boa não havia kinguilas”, salienta.
Se nos bancos 150 kwanzas compravam um dólar, na rua são precisos 270 kwanzas para o mesmo valor de dinheiro.
O problema é que agora, mesmo na rua, os dólares escasseiam e são muito caros. Se nos bancos 150 kwanzas compravam um dólar, na rua são precisos 270 kwanzas para o mesmo valor. O segundo problema é que o kwanza é “dinheiro de monopólio”, como classificou ao Observador um português que trabalha em Luanda. Os kwanzas só servem para usar em Angola, não se podem tirar de lá e não valem em mais lado nenhum do mundo. “O que acontece é que as pessoas que têm toda a sua vida aqui têm poucos problemas, pagam tudo em kwanzas. Pior é para quem tem despesas para pagar em Portugal, porque não recebe nem dólares, nem euros“, sublinha. E para quem está nesta situação, há duas hipóteses: ou espera que os bancos façam o câmbio, e isso está a demorar entre 90 a 120 dias — enquanto há dólares para isso — ou troca os kwanzas na rua e basicamente duplica o valor das suas despesas, uma vez que precisa de duas vezes quase mais kwanzas para comprar o mesmo valor de dólares, tal como fazia nos bancos.
E não são apenas os trabalhadores que tentam arranjar dólares a alto preço. Os próprios empresários já recorrem ao mercado paralelo para conseguirem fazer face às despesas que têm.Porque também eles se vêem entre a espada e a parede, uma vez que muitos trabalhadores portugueses têm contratos que prevêem que a maior parte do salário seja transferida diretamente para Portugal. Então, novamente, das duas uma: ou os donos das empresas esperam pelo tempo que os bancos demoram a efetuar as transferências (os que ainda as fazem) — provocando atrasos nos salários que vão dos 90 aos 120 dias — ou tentam trocar os kwanzas no mercado paralelo, e basicamente um trabalhador passa a custar-lhes o dobro.

… ou no facebook

Mas os kinguilas, com a crise do petróleo e a falta de divisas, não ressurgiram só nas ruas. Surgiram onde não tinham surgido antes: nas redes sociais. Mais concretamente no Facebook. Há dólares, euros – e tudo se troca, em Lisboa ou Luanda, por kwanzas. Estão ali, em grupos privados e à distância de uma mensagem, os negociantes e os que procuram, desesperadamente, quem negoceie consigo. E negoceiam-se desde centenas a milhares de euros e dólares. Às claras.
facebook-kwanzas

80 mil com ordenados em atraso?

Angola foi, por anos a fio e durante a última década, um paraíso para as empresas portuguesas investirem e para muitos portugueses emigrarem em troca de salários que nunca iriam conseguir obter em Portugal. Foi uma tempestade perfeita: a crise em Portugal convidava a sair; o dinheiro que por cá escasseava, na petroeconomia angolana havia a rodos, e o Estado angolano, com a economia em expansão, queria gastá-lo, queria crescer. E crescer envolvia construir tudo o que anos e anos de Guerra Civil destruíram ou impediram que se construísse.

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